Este escriba
revirava sua modesta biblioteca, à procura de um tomo com referências e
informações para mais uma das emocionantes e intelectualmente desafiadoras
matérias jornalísticas que ele encara com intrépido ânimo, quando, antes de
encontrar o referido volume perdido entre camadas de poeira, topou com um livro
que lera há anos e que lhe despertou algum interesse indefinível e penetrante,
assim, retirei este outro livro da estante, deixei-o de lado, para investigá-lo
mais tarde.
Apenas alguns dias
depois lembrei de folhear as páginas do referido volume, nada menos que O invisível cavalo voador, uma coletânea
de crônicas do falecido Lourenço Diaféria, um dos meus cronistas favoritos,
aliás. O texto e as ilustrações
internas, deliciosos, me evocavam diversas lembranças e devaneios, enquanto lia
trechos ao acaso, até que alcancei as últimas páginas e topei com uma crônica
intitulada ‘cigarra’, que por meio de uma historinha protagonizada por uma
típica representante da medíocre classe média paulistana dos anos 80,(acreditem,
caros leitores, a classe média brasileira dessa década era menos inculta, grosseira
e boçal que a atual, ou talvez esse
pobre escrivinhador tenha sido dominado pela mentalidade ‘antigamente tudo era
melhor’ – vade retro, te esconjuro três vezes, nostalgia barata!!Argh!!!),
retrata um comportamento, mais que um tipo humano, que teria vicejado na São
Paulo oitentista: os homens ( e mais raramente mulheres) casados que deixados
sozinhos na metrópole por seus consortes e filhos, que saíam em viagem de
férias, viagem da qual o pobre coitado não podia participar, na maioria das
vezes, por motivos profissionais, seriam
como cigarras perdidas, pequenos animais (almas?) à solta, sem lastro emocional
ou orientação, que zumbindo para lá e para cá( se o termo já tinha essa acepção
antes, não consegui confirmar), terminavam por se entregar à vida boêmia,
durante os dias(noites) em que se viam privados da maravilha que é a vida
familiar... Consta que houve vários bares e casas noturnas da cidade que seriam
especializadas em receber esses pobres notívagos solteirões por contingência e
não por convicção, os quais, alguns relutantemente, outros com alegria, acabariam
por viver aventuras amoroso-sexuais com outras almas perdidas na
metrópole hostil. Aventuras porém de curta duração, pois todos e todas cigarras
estavam nessa condição por força das circunstâncias, todos seriam exemplarmente convictos da santidade do
lar, do casamento e da família, segundo rezam os relatos da época. Não é de
comover o romantismo, o idealismo, a candidez e a bunda-molice dessa figura,
caros leitores?
Pois bem, o grande
Diaféria criou, com seu talento, um
texto em que uma mulher vê-se no papel de cigarra solta na cidade, visto que
marido e filhos se mandaram em férias, e começa a devanear com um encontro
noturno com um sedutor desconhecido em uma boate de classe. Eis que toca a
campainha de sua casa e ela recebe a visita mais que inesperada de...(não
contarei o desfecho, claro, procurem o livro em algum sebo e se engrandeçam conhecendo
a genialidade desse escritor).
E o que esse texto
me provocou? Pensamentos molengas e langorosos, a lamentar secretamente, no
recôndito do lar, minha opção pela solteirice? Nostalgia por algo que não
experimentei, sentimento que inclusive é uma praga a assolar esta época?
Arrependimentos, lembrando alguma linda musa questionável do passado, a qual me
deixou ao descobrir minha repelência incurável a matrimônio, monogamia, etc,
etc?
Não, caros
leitores, relembrar esse sentido para a palavra ‘cigarra’, sentido
aparentemente em desuso, fez-me rir e muito, pois meus amigos casados ou
descasados sempre aguardam/ aguardavam ansiosamente as férias e feriados
prolongados durante os quais suas rádio-patroas e proles os deixam/deixavam em
paz para muitíssimo bem-vindos dias de gandaia e esbórnia. Para eles e para
mim, saber que existiram (e certamente ainda existem) homens que se entregam à
boêmia e à putaria sem convicção, desejosos do retorno de suas famílias,
ansiosos para retornar à vida familiar, e que tratam a vida noturna como um
intervalo meio à força de sua ‘vida real’, é motivo para muitas e muitas
gargalhadas numa mesa de um de nossos bares
favoritos.
Serei eu muito zombeteiro,
algo cínico e até cruel, ou talvez ando apenas com gente de minha laia e isso
limita minha visão de mundo?
Saudações canalhas
e cafajestes
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