Serviço feito sem grandes imprevistos ou atropelos, pouco antes das dez da noite já estávamos a caminho de nossas casas, a pé (ambos moramos no Centro da cidade e o estúdio da gravação era na mesma região). Eis que ao chegarmos na Praça da República topamos com escuridão por todos lados: mais um blecaute no Centro. A fome apertava e como nenhum dos dois estava disposto a cozinhar em suas cozinhas, à luz de lanterna, resolvemos nos bandear para a Rua Angústia, em busca de algum lugar aberto para comermos alguma das deliciosas porcarias que cintilam sua gordura nos balcões dos bares/lanchonetes. Sabíamos que a chance da caminhada dar em nada era altíssima, em vista do horário restrito de funcionamento dos estabelecimentos, mas contumazes insensatos, lá fomos. Dito e feito: subimos e descemos a gloriosa rua e absolutamente nenhum bar com guloseimas prontas para consumo estava aberto. Decidimos retornar e fazer o que seria mais sensato(curioso que nós temos o costume de fazer o lógico somente depois de tentar o insensato e este dar errado): ir à eterna lanchonete Estadão, que sabíamos, estaria aberta e movimentada.
Após forrar o estômago com os ótimos lanches e salgados e nos abastecermos com cerveja, passamos alguns instantes, parados na calçada, proseando sobre os tempos idos, sobre o pré-pandemia, nossas noitadas na região, tão recentes e tão distantes em nossa deturpada percepção. Até que, desejosos de tomar uma cerveja mais intensa, resolvemos descer mais (em sentido literal e figurado). E lá fomos rumo ao Vale do Anhangabaú, rumo a um mercado muito famoso na região(não direi o nome, mas frequentadores deduzirão de chofre a que comércio me refiro), em busca de uma cerveja de maior qualidade. A noite estava escura, a rua Quirino de Andrade bem pouco convidativa, tipos suspeitos subindo e descendo a rua, mas seguimos impávidos colossos da insanidade. Foi com estupor que descobrimos: esse mercado também está decadente, somente cervejas baratas e da pior qualidade agora pontuam em suas prateleiras de bebidas, além dos indefectíveis vinhos baratos, vodkas horroviskas e corote(arrghhh!!!) e imitações deste. Por sorte, um pequeno, feio e acanhado mercadinho quase vizinho, o qual não conhecíamos até então, salvou nossos fígados sequiosos por álcool de qualidade, ao exibir na sua única geladeira ipas por preço decente! Apanhamos a bebida e ficamos de bobeira, olhando o movimento, que ali, naquele pedaço do Centro tão marcado por encrencas e confusões pesadas (incluindo tiroteios e brigas com facadas), é sempre digno de suspeita e de se ter cuidado redobrado.
Quando demos por nós, nos encaminhamos à ponta da rua e espiávamos um lugar que foi muito importante em nossas vidas noturnas e do qual nos afastamos há uns bons anos, tão arriscado se tornou simplesmente ficar na sua porta (também não darei nome, localização ou descrição do lugar. Bons entendedores sabem que lugar é esse, inclusive, ele é cenário de postagens antigas do blog). Qual nossa surpresa!!! Uma noite nublada e friorenta de terça, pouco movimento naquela região degradada e o bar em questão aberto!! Não havia vivalma em frente ou circulando em volta, mas a porta de vidro aberta e as luzes acesas eram sinal inequívoco da presença do dono, à espera sabe-se do quê.
Caros leitores, nesse momento ocorreu o ápice ou o momento mais degradante da noite(e afirmo que foi as duas experiências ao mesmo tempo):
Nos encaramos fixamente, as garrafas de cerveja firmemente presas em nossas mãos. Em nossos olhos todas as lembranças das ótimas noites lá passadas, conversas, zoeiras, flertes e outras coisas mais com a mulherada, rock rolando, passaram com um brilho intenso de nostalgia e desejo por tudo isso. Mas era uma fria e tristonha noite de terça-feira e claro que nada disso surgiria. Apenas vontade de relembrar esses eventos, no local em que ocorreram, é que nos dominou por um momento. Mas a razão foi mais forte, ambos começamos a rir de puro nervosismo e exclamamos em uníssono:
-NÃO, NÃO!!!!!!!!!!!
E mais que depressa retornamos ao mercadinho, cujo dono já começava a fechá-lo. Terminamos a bebida, rindo, um pouco envergonhados, um pouco orgulhosos de nós mesmos, por termos resistido à tentação das trevas. Ficamos alguns minutos repassando a cena, rindo, desdenhando de nós mesmos, até que exclamei:
-Agora entendemos como nunca porque o Anhangabaú, dizem, era um lugar mal-assombrado e evitado pelos índios que viviam por aqui. Isso foi uma verdadeira descida ao inferno moral.
E mais que depressa subimos de volta à Praça da República, onde cada um tomou rumo para sua toca.
Os caros leitores podem julgar exagero dramático de parte deste sujeitinho, mas pensem um pouco: em uma terça à noite pouco acolhedora a boêmios, descer para um pedaço do Centro que se tornou notório pela violência, apenas para buscar cerveja incrementada e, mesmo que por um átimo de tempo, ser tentado a visitar o outrora epicentro dessas confusões, que afugentaram todos os frequentadores da região com amor a sua pele? É ou não uma verdadeira descida ao inferno e voltar para contar?
Saudações canalhas e cafajestes
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