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segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Uma descida aos mais fundos círculos do inferno (ou do Anhangabaú, ou uma descida ao fundo do poço moral, ou ao...)


Há cerca de duas semanas este escriba foi convidado a fazer um trabalho presencial, fora do seu refúgio, que era irrecusável: nas imediações de sua casa, o pagamento era excelente, serviço rápido de redigir um texto curto e acompanhar/supervisionar a gravação do curta metragem em que este seria usado, todos protocolos de segurança para esta época de pandemia seguidos à risca. E ainda convoquei meu amigo colaborador mor desta tranqueira para ser auxiliar e quebra galho da tarefa, por um pagamento também impossível de recusar. 

Serviço feito sem grandes imprevistos ou atropelos, pouco antes das dez da noite já estávamos a caminho de nossas casas, a pé (ambos moramos no Centro da cidade e o estúdio da gravação era na mesma região). Eis que ao chegarmos na Praça da República topamos com escuridão por todos lados: mais um blecaute no Centro. A fome apertava e como nenhum dos dois estava disposto a cozinhar em suas cozinhas, à luz de lanterna, resolvemos nos bandear para a Rua Angústia, em busca de algum lugar aberto para comermos alguma das deliciosas porcarias que cintilam sua gordura nos balcões dos bares/lanchonetes. Sabíamos que a chance da caminhada dar em nada era altíssima, em vista do horário restrito de funcionamento dos estabelecimentos, mas contumazes insensatos, lá fomos. Dito e feito: subimos e descemos a gloriosa rua e absolutamente nenhum bar com guloseimas prontas para consumo estava aberto.  Decidimos retornar e fazer o que seria mais sensato(curioso que nós temos o costume de fazer o lógico  somente depois de tentar o insensato e este dar errado): ir à eterna lanchonete Estadão, que sabíamos, estaria aberta e movimentada.    

Após forrar o estômago com os ótimos lanches e salgados e nos abastecermos com cerveja, passamos alguns instantes, parados na calçada, proseando sobre os tempos idos, sobre o pré-pandemia, nossas noitadas na região, tão recentes e tão distantes em nossa deturpada percepção. Até que, desejosos de tomar uma cerveja mais intensa, resolvemos descer mais (em sentido literal e figurado). E lá fomos  rumo ao Vale do Anhangabaú, rumo a um mercado muito famoso na região(não direi o nome, mas frequentadores deduzirão de chofre a que comércio me refiro), em busca de uma cerveja de maior qualidade.  A noite estava escura, a rua Quirino de Andrade bem pouco convidativa, tipos suspeitos subindo e descendo a rua, mas seguimos impávidos colossos da insanidade. Foi com estupor que descobrimos: esse mercado também está decadente, somente cervejas baratas e da pior qualidade agora pontuam em suas prateleiras de bebidas, além dos indefectíveis vinhos baratos, vodkas horroviskas e corote(arrghhh!!!) e imitações deste. Por sorte, um pequeno, feio e acanhado mercadinho quase vizinho, o qual não conhecíamos até então, salvou nossos fígados sequiosos por álcool de qualidade, ao exibir na sua única geladeira ipas por preço decente! Apanhamos a bebida  e ficamos de bobeira, olhando o movimento, que ali, naquele pedaço do Centro tão marcado por encrencas e confusões  pesadas (incluindo tiroteios e brigas com facadas), é sempre digno de suspeita e de se ter cuidado redobrado. 

Quando demos por nós, nos encaminhamos à ponta da rua e espiávamos um lugar que foi muito importante em nossas vidas noturnas e do qual nos afastamos há uns bons anos, tão arriscado se tornou simplesmente ficar na sua porta (também não darei nome, localização ou descrição do lugar. Bons entendedores sabem que lugar é esse, inclusive, ele é cenário de postagens antigas do blog). Qual nossa surpresa!!! Uma noite nublada e friorenta de terça, pouco movimento naquela região degradada e o bar em questão aberto!! Não havia vivalma em frente ou circulando em volta, mas a porta de vidro aberta e as luzes acesas eram sinal inequívoco da presença do dono, à espera sabe-se do quê. 

Caros leitores, nesse momento ocorreu o ápice ou o momento mais degradante da noite(e afirmo que foi as duas experiências ao mesmo tempo): 

Nos encaramos fixamente, as garrafas de cerveja firmemente presas em nossas mãos. Em nossos olhos todas as lembranças das ótimas noites lá passadas, conversas, zoeiras, flertes e outras coisas mais com a mulherada, rock rolando, passaram com um brilho intenso de nostalgia e desejo por tudo isso. Mas era uma fria e tristonha noite de terça-feira e claro que nada disso surgiria. Apenas vontade de relembrar esses eventos, no local em que ocorreram, é que nos dominou por um momento. Mas a razão foi mais forte, ambos começamos a rir de puro nervosismo e exclamamos em uníssono:

-NÃO, NÃO!!!!!!!!!!!

E mais que depressa retornamos ao mercadinho, cujo dono já começava a fechá-lo. Terminamos a bebida, rindo, um pouco envergonhados, um pouco orgulhosos de nós mesmos, por termos resistido à tentação das trevas. Ficamos alguns minutos repassando a cena, rindo, desdenhando de nós mesmos, até que exclamei:

-Agora entendemos como nunca porque o Anhangabaú, dizem, era um lugar mal-assombrado e evitado pelos índios que viviam por aqui. Isso foi uma verdadeira descida ao inferno moral.

E mais que depressa subimos de volta à Praça da República, onde cada um tomou rumo para sua toca.

Os caros leitores podem julgar exagero dramático de parte deste sujeitinho, mas pensem um pouco: em uma terça à noite pouco acolhedora a boêmios, descer para um pedaço do Centro que se tornou notório pela violência, apenas para buscar cerveja incrementada e, mesmo que por um  átimo de tempo, ser tentado a visitar  o outrora epicentro dessas confusões, que afugentaram todos os frequentadores da região com amor a sua pele?  É ou não uma verdadeira descida ao inferno e voltar para contar?

Saudações canalhas e cafajestes

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